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Lorena e a Saúde Pública
Lorena e a Saúde Pública

 LORENA E O SUS

 

 

Lorena é brasileira, residente e domiciliada em Porto Alegre. Uma pessoa comum, de bem com a vida, que cumpre com suas obrigações de cidadã: não fura fila; não joga lixo na rua; não “fala” gritando; não usa celular onde é proibido; não perturba os vizinhos, não escuta som com volume alto; não fuma; não bebe exageradamente; lava as mãos quando vai ao banheiro, antes e depois; cuida da saúde; abre as janelas em ônibus e lotação para ventilar; cede o lugar para mulheres grávidas ou senhoras idosas; cumprimenta as pessoas sorrindo. Enfim, faz o que todos devemos fazer para uma boa convivência no cotidiano das cidades.

 

 

Lorena usa um posto de saúde da capital para consultas e, como é usuária de medicamento controlado, precisa ir ao posto a cada dois meses para renovar a receita. O sistema diz para fazer o seguinte: quando faltar uma cartela de medicamento ou uma semana para acabar, dirija-se ao posto levando a cópia da receita anterior e, no setor de acolhimento, solicite renovação, deixando a cópia com a atendente. Devendo retornar quando informado, normalmente em uma semana, e antes de acabar o medicamento.

 

 

Lori, carinhosamente chamada assim pelos seus familiares e amigos, numa quarta-feira, foi ao posto para solicitar a renovação da receita. A funcionária que a recebeu atendeu-a com duas pedras na mão. Resmungando, foi até o setor de acolhimento e, ao retornar, anotou informações num pedaço de papel que anexou na receita. Lori a informou que necessitava da receita para a próxima quarta-feira, pois acabariam os comprimidos. A funcionária, ainda com as pedras na mão, esbravejou que só na quinta-feira. Lori, então, disse que passaria na quarta-feira à tarde e aguardaria até que a receita estive pronta.

 

 

Na quarta-feira, Lorena foi ao dentista e não pode ir ao posto. Preparou-se para sair logo cedo no dia seguinte, pegaria a receita no 1º andar e passaria na farmácia que ficava no térreo. Assim, teria tempo de tomar a cápsula antes do meio-dia. O tal medicamento não deve ser ingerido na parte da tarde, pode interferir no sono.

 

 

Chegou ao posto por volta de 10h15min. Estranhou que a sala de espera estava vazia, assim como os guichês de cadastramento e marcação de exames. Ninguém esperava atendimento. Na recepção, algumas senhoras queriam informações da atendente, assim como Lorena. Às quintas-feiras, o posto fecha às 10h00 para reunião da equipe e só reabre às 13h30min, quando inicia o atendimento do período da tarde.

 

 

As senhoras começaram a se perguntar o motivo da tal reunião acontecer às 10h00, por que não no horário do almoço? Quando Lori falou isso, uma funcionária fulminou-a com um olhar raivoso, dizendo que era impossível deixar de almoçar para fazer a reunião. Lori comentou que fosse realizada uma reunião-almoço, pois quando residia em outro bairro, a equipe do posto fazia as reuniões durante o almoço, sem comprometer o atendimento. A funcionária sorriu irônica e afastou-se. Uma senhora que estava próximo delas disse que ligaria para a imprensa, e afirmava que era um grande descaso e falta de respeito com pessoas que precisavam de atendimento médico.

 

 

Lori solicitou gentilmente à atendente que precisava da receita e que sequer sabia da reunião que acontecia às quintas-feiras. A moça foi chamar a responsável, que logo veio toda solícita e foi ao setor de acolhimento para apanhar a receita. O tempo passa e nada dela voltar. Até que se rendeu e encarou Lori com o “rabinho entre as pernas”… A receita havia sumido… Desapareceu sem deixar vestígios… (ainda bem que os postos estão ligados por computadores). Entraram, então, na sala do acolhimento, pois a moça acessaria o computador para fazer uma nova receita e ao meio-dia, quando chegasse um médico do turno da tarde, colheria a sua assinatura. E quem disse que ela conseguiu abrir o computador? Nada de entrar a senha… Ela estava abalada e constrangida… Portou-se mal e acabou se dando mal! Deve ter lembrado da semana anterior que a atendeu grosseiramente. Disse que à tarde conseguiria a receita.

 

 

Lori, então, decidiu sair dali e retornar à tarde para buscar a tal receita. Não reclamou, não xingou, continuou cordial e educada. Estava ficando cansada disso tudo. Há anos usava o SUS e, a cada momento, mais e mais confusão, mudança de regras, de procedimentos, que acham que vai melhorar e só atrapalham. Já discutiu muito com esse povo ao longo de sua vida. Lutou, batalhou, reclamou, esperneou e para nada, só piora. Funcionários em guerra com o prefeito por causa de salários e plano de carreira, e os usuários que se danem! Obtiveram benefícios e mais benefícios na pressão, na greve, nas disputas de poder. Muitos políticos, ao longo de seus mandatos, ou cediam ou perdiam votos… E achavam melhor ceder, licença prêmio, mais isso, mais aquilo e nunca estão de acordo em fazer concessões, por menor que seja, em benefício da cidade, dos usuários, da solidariedade.

 

 

Não vamos generalizar, considera Lori, nem todos são iguais e pensou na médica, que ao saber do resultado da mamografia, mesmo não podendo atendê-la, encaminhou-a para a enfermeira, que providenciou a solicitação de consulta com a Oncologia e tratou-a cordialmente. E continuou divagando enquanto andava pelas ruas do centro da Capital. Lembrando que em menos de 24h da solicitação, a consulta foi agendada num dos melhores hospitais da cidade. Estava em boas mãos e tudo acontecendo como o esperado para uma paciente com suspeita de um nódulo categoria 4 (achados de moderada suspeita para malignidade), quando a classificação BI-RADS vai até 6.

 

 

Lorena chegou ao hospital, onde deveria reagendar um exame de imagem. Enquanto esperava a chamada de sua senha, chateou-se com o blá, blá, blá, num tom elevado, dos demais clientes que aguardavam. Até que um camarada chegou com celular ligado num vídeo ou canal, ela só sabia que o som estava alto e perturbava. Alertou-o, chamando sua atenção para o cartaz que “solicitava que os celulares deveriam ser desligados”. O tal a ignorou e continuou assistindo o vídeo. Lori tinha vontade de arrancar-lhe o celular das mãos e jogar na lixeira ou, então, chamar a segurança, sapatear em cima do aparelho... Porém, nada fez! Como resolver esse comportamento egoísta e desrespeitoso da maioria das pessoas? Gente sem nexo, insana e mal-educada. Gente ignorante e sem noção da realidade. Procurou acalmar-se e logo percebeu que o “babaca” se aquietou. Saiu dali apressada e com fome, quase 12h30min, pensando em parar para comer alguma coisa antes de retornar ao posto. Decidiu resolver o assunto da receita e depois almoçar com calma.

 

Chegou ao posto após as 13h00, encontrou várias pessoas aguardando atendimento. Logo iniciaria o turno da tarde e identificou-se na recepção, solicitando a presença da moça que “lhe devia” a receita. Naturalmente, que ainda não estava assinada e carimbada pelo médico. Ela passou por Lori toda sorridente, balançando a receita, enquanto se dirigia ao consultório para colher a assinatura. Logo depois, saiu do posto rumo à farmácia que ficava no térreo.

 

E como o serviço era público e naquele dia tudo estava acontecendo de forma surreal, encontrou a farmácia fechada. Funcionários participando de curso de aperfeiçoamento hoje e no dia seguinte também. Indicava outra farmácia, não tão longe dali. Dizer o quê? Reclamar para quem? Engoliu a raiva e foi em busca da outra farmácia, que estava lotada, com uma fila quilométrica.

Não aguentou mais. Desistiu e foi comprar o medicamento. Acabou a agonia de Lorena? Ainda não.

 

Entrou numa loja de uma rede de farmácias e solicitou o medicamento, de preferência com desconto, pois possuía o cartão fidelidade. E não é que tinha um descontão? Só que naquela loja, no seu estoque, não tinha as quatro caixas que Lori precisava. A vendedora, então, procurou a loja mais próxima que tivesse o medicamento em estoque. Com a informação, rumou para a loja. Quando foi atendida, solicitou as quatro caixas da receita, isto é, deveria tomar duas cápsulas por dia, durante dois meses (rede pública fornece receita para medicamento controlado para dois meses; e uma receita tem validade de 30 dias), e cada caixa continha 30 cápsulas, totalizando 120 comprimidos. Aí a vendedora, um pouco exaltada, disse-lhe: - Calma! Só posso lhe vender o que está na receita, deixa eu fazer as contas! Lori repetiu o cálculo para a vendedora e recebeu um olhar que dizia: cala a boca! A moça ainda levou um tempinho fazendo os cálculos… Eita, conta difícil!

 

No final deu tudo certo, medicamento comprado, com um descontão, o relógio marcava quase 15h00 e o estômago não parava de reclamar. Desistiu de comer na rua, comprou um sorvete de casquinha, para “enganar o estômago”, e seguiu para casa.

 

Quando Lorena pensa na próxima renovação da receita, arrepios de insegurança e humilhação percorrem seu corpo. Quando vai mudar? O que falta, pensa ela, é gestão. O secretário deve reciclar esse povo, fazer um vestibular, uma seleção, uma renovação, tirar o que é ruim e deixar o que é bom. Não pode demitir funcionário público sem justa causa (parece que é essa a lei), então, que tal um remanejamento? Alguns funcionários públicos se acham donos do pedaço e tratam os usuários como se estivessem mendigando atendimento.

É um direito constitucional!

E Lorena não abre mão do seu direito, mas quer mudanças!

 

Nell Morato

20/04/2019

 

NOTA da AUTORA: 

O Sistema Único de Saúde - SUS – foi criado pela Constituição Federal de 1988 e regulamentado pelas Leis n.º 8080/90 (Lei Orgânica da Saúde) e nº 8.142/90, com a finalidade de alterar a situação de desigualdade na assistência à Saúde da população, tornando obrigatório o atendimento público a qualquer cidadão.

 

SUS – Sistema Único de Saúde, administrado pelo Ministério da Saúde, isto é, muitos políticos metendo a colher no sistema. A história nos mostra que os políticos ditam regras e fazem leis para os usuários do SUS. E sempre dificultando o acesso ao sistema, barrando medicamentos que salvam vidas, criando empecilhos para cirurgias de alta complexidade. Às vezes, até as mais simples… Quando vai mudar?  (Nell Morato-20/04/2019)