FECHANDO AS VIDRAÇAS
Não lembro o momento que fumei o primeiro cigarro. Lembro apenas que “fingia” que fumava. Fazia de conta, até que as amigas zoaram de mim:
- Olhem a Nell! Ela não traga o cigarro... Não sabe fumar!
E todas, as cinco, riam muito... E, eu? “Maria vai com as outras...” aprendi a fumar, a engolir a fumaça e soltar delicadamente pela boca. Vivíamos numa época em que fumar era considerado charme e elegância. Fumava escondido da minha mãe. Como fumar escondido pode ser charmoso? Na verdade, nada disso importava, eu queria mesmo, a aprovação das meninas. Queria ter amigas e se para estar na turma dependia o cigarro, então eu fumaria.
E continuei fumando. Um dia descobri que estar “na turma” não era bom. As garotas se mostravam invejosas e falsas. E depois de um tempo, cada uma seguiu o seu caminho. E eu levei comigo o cigarro. Estava viciada em tabaco. E o pior, meu namorado também estava e por minha culpa... Tentei parar e queria que ele também parasse, e me disse:
- Eu não vou parar. Eu gosto de fumar. Costumamos fazer tudo junto e vamos continuar fumando.
Acabei concordando, até porque parar de fumar não era possível. Não conseguia ficar um dia sem cigarro. Como se minha vida dependesse da fumaça que entrava no meu pulmão. Que relaxava e me deixava tranquila e sem eu saber estava se instalando e fazendo morada dentro de mim. O vício é igual à necessidade de respirar. Não podemos viver sem respirar. E eu não podia ficar sem fumar.
Na época, não se sabia quase nada dos malefícios do tabaco. As marcas ilustravam as páginas das revistas e os comerciais de televisão, com gente saudável e bonita. Éramos constantemente incentivados a fumar. Não sabíamos a respeito de outras drogas, falava-se no ópio, derivado da papoula, que se consumia na Europa e mais nada. A droga que existia para nós era o tabaco, liberada e vendida livremente.
A vida seguiu seu caminho, e fui alterando aqui e ali. A cada decepção eu me amparava no cigarro, fumava mais e sempre mais. O cigarro era o amigo que permanecia ao meu lado, em todos os momentos. Se me oferecessem um suculento filé e um maço de cigarros, para que eu escolhesse entre os dois, com certeza ficaria com o cigarro. Até arrumei um parceiro para o meu amigo, o café. Parceria deliciosa de todas as manhãs e o dia todo. E outros parceiros chegaram, a tosse seca, irritante e constante. Os resfriados que duravam duas semanas. A automedicação associada ao café e ao tabaco, só aumentavam os sintomas. E eu me perguntava: - Como posso viver sem cigarro?
Foi a decisão mais difícil da minha vida. Parar de fumar. Como eu vou parar de fumar? E lembrei que a minha dentista havia comentado sobre um programa do Ministério da Saúde e do INCA, totalmente gratuito e acessível nos Postos de Saúde. Com acompanhamento médico e psicólogo, com o uso de adesivos de nicotina, medicamentos inibidores e palestras.
Nunca acreditei em palestras. Palavras não mudariam a minha vontade de fumar, porque eu sabia dos malefícios do cigarro, do odor desagradável para os não-fumantes, o envelhecimento da pele e as doenças que poderiam ser causadas pelo longo período ingerindo nicotina e demais substâncias nocivas. Só que não eram palavras vazias. A coordenadora Vera, parecia entender a íntima relação que tínhamos com o cigarro. Eu estava num grupo com mais quatro mulheres e nos apoiamos nela. O método consistia de quatro reuniões, uma por semana, com desafios a serem cumpridos e sem obrigatoriedade. Após o período de 30 dias foi feita uma avaliação para determinar qual a ajuda, que cada uma de nós precisava. Enquanto o hábito era gradativamente esquecido, os adesivos mantinham a nicotina no sangue para evitar as crises de abstinência.
Quão profunda era a dor de perder um amigo. Acordava pela manhã sem saber o que fazer da minha vida e olhava para o sofá, acabando por dormir o dia todo... Durante dois meses eu vivi nas sombras de um profundo e grotesco mundo sem vida, sem sorrisos, sem cor, sem esperança, onde só o cheiro do cigarro permanecia latente na minha pele... E meu cérebro foi substituindo o prazer da nicotina pelo café... Como se o sabor de um café se transformasse em um maço de cigarros, todos ali, acesos ao mesmo tempo e eu sem saber qual pegar... Eram tantos, e acabavam se apagando enquanto o café servia ao seu propósito. Os cristais de gengibre e os pirulitos de doce de leite foram coadjuvantes no grande palco, onde eu gradativamente me transformei numa ex fumante. O que jamais deixarei de ser.
Houve uma enorme transformação na minha vida física e mental. O médico disse que meu cérebro oxigenou. Como se as minhas lembranças da infância e da juventude estivessem imersas na fumaça que obstruía meu cérebro. Várias vezes, uma amiga perguntou se eu era livre. E eu respondia que sim, que era livre e fazia o que queria.
Eu era uma prisioneira do tabaco e do vício. Uma viciada numa droga legal, vendida livremente. Quando eu pensava ser livre... Eu era apenas uma escrava do cigarro que acendia em todas as manhãs... Só depois que parei de fumar é que descobri a verdadeira liberdade. A liberdade de fechar as vidraças. Nada representa mais o fim da escravidão tabagista, que no inverno gelado, poder fechar as vidraças na minha casa. Que mesmo fechadas o ambiente permanecerá limpo, perfumado e arejado... Porque ali ninguém fuma.
Nell Morato
18/08/2016