O COMEÇO DA MINHA VIDA
Decidi começar a minha vida num dia especial, o aniversário de minha mãe. Eu estava cansada de ficar escondida dentro d’água, e também estava louca para ver a cara de meu pai. Quando ele souber a verdade sobre mim, ficará decepcionado ou feliz? Bela voz tinha o meu pai, devia ser um homem forte e destemido, um verdadeiro herói. E minha mãe? Parecia ser muito severa. Hoje é seu aniversário e ela não vai reclamar se eu aparecer para comemorarmos. Está quase na hora, e eu vou chegar exatamente às seis horas da manhã.
Foi uma correria total. Era o terceiro filho de minha mãe que estava para nascer, e eles agiam como se fosse o primeiro. Meu pai corria para um lado, minhas irmãs para outro, elas estavam muito agitadas. A parteira mandou que todos saíssem do quarto, pois estavam atrapalhando a minha chegada e distraiam a minha mãe. Era o meu momento, o show era meu. Após dez longos anos, minha querida mãe, por insistência de meu pai, decidiu ter mais um filho. Só que o meu pai desejava um menino. E o que estava para nascer era outra garotinha.
A água se foi e em seguida, na hora marcada, eu escorreguei para fora do corpo de minha mãe. Queria abraça-la e beija-la, ou então chegar cantando parabéns, mas só o que consegui fazer foi chorar. Até porque todos esperam pelo choro do bebê ao nascer.
Quando a parteira falou que era uma menina, minha mãe começou a rir alto e eu parei de chorar e fiquei a observando. Ela me amaria incondicionalmente, por toda a sua vida. Cuidaria de mim, e nos primeiros anos faria tudo para me manter confortável e feliz. Eu amei aquela mulher de cabelos castanhos e olhos azuis. E fiquei muito curiosa para saber se meus olhos eram da mesma cor, um lindo tom de azul. Ela me fitava ternamente. E a porta abriu, deixando entrar o meu curioso pai.
- E então? Cadê o meu guri? – pergunta ele. E minha mãe responde sorrindo:
- É uma menina!
- Uma guria? E o meu gurizinho?
Nesse instante eu comecei a chorar... Queria era gritar, tamanha indelicadeza de meu pai. Falta de tato, falar ali na minha presença, só mesmo um homem para se comportar de forma tão grosseira. E continuei chorando, só parei quando minha mãe me aconchegou em seus braços e colocou seu seio em minha boca. Adorei aquele carinho, o leite doce e os afagos de minha mãe.
O meu pai havia desaparecido. Então, deixei para explorar a minha nova vida mais tarde, e fui dormir um soninho gostoso, como falava minha mãe.
Acordei chorando, me sentindo molhada e com fome. E a minha querida mãe veio cuidar de mim. Trocou minha fralda e eu senti o delicioso aroma do leite doce e mostrei a ela o quanto estava faminta. Logo estava seca e alimentada e pensei que me levaria para conhecer a minha casa, mas me colocou de volta na cama. Imediatamente reclamei. Ela então chamou minhas irmãs para me conhecerem. As duas eram crescidas, dez e quinze anos, nada a ver comigo. Fiquei ali olhando para elas, e cochichavam que não cuidariam de mim. Eu não precisava delas. Tinha o amor de minha mãe.
Sentia-me entediada e logo estava chorando alto. As duas saíram correndo e escutei a linda voz de meu pai. Imediatamente parei de chorar e fiquei na expectativa. Aproximou-se da minha cama e senti seu olhar curioso. Ele então falou:
- Vim te conhecer minha filha!
Que voz suave ele tinha. E me colocou em seus braços. Mãos enormes, as do meu pai. Ficou me observando e pude então analisar seu rosto. Traços rudes e fortes, lindos olhos castanhos e pensei se os meus seriam daquela cor. Puxa vida, ninguém falava como eu era. Então ouvi a voz de minha mãe e fiquei aguardando...
- E então? Perguntou ela ao meu pai.
- Já que não tem mais jeito, eu não terei o meu guri, vou transformar essa linda guriazinha num moleque. Vai andar comigo e cuidar do sítio, da terra e dos animais, vou ensinar tudo para ela.
- É uma menina, precisa ser educada de acordo. - diz minha mãe.
- Nada feito! - diz meu pai. – Já tens duas gurias prendadas, essa aqui é minha e vou educar do meu jeito!
Ele volta seu rosto para o meu, e beija minha pequenina testa e afaga meu rosto. Eu já o amava antes de conhecê-lo, agora então... Ele vai me transformar numa molequinha, igual a um guri... Igual a um guri? Será? Não, não vou pensar mal do meu pai. Ele vai transformar a sua linda filha numa parceira. Finalmente alguém falou sobre minha aparência, sou uma garota bonita.
E então, meus queridos pais, quem vai me levar para conhecer a minha casa, o sítio, a terra, palavra bonita, terra, deve ter um cheiro bom, e os tais animais que meu pai falou? Estou morrendo de curiosidade sobre a vida, parece que terei muitas coisas para ver e para aprender. Obrigado, queridos pais! Obrigado pelo amor de vocês que criou a oportunidade para a minha existência.
Nell Morato
03/12/2014
Texto publicado na página 32 da revista Cultura en el mundo
https://issuu.com/culturanomundo/docs/cultura_mundo_04
Nota da autora:
Depois que meu pai morreu, minha mãe viveu de memórias. Eu tinha seis anos e a seguia por toda parte. Nas visitas que fazia ou recebia em casa, costumava falar sobre a relação que tínhamos, eu e meu amado pai.
Um dia, não sei por que, comecei a escrever em um caderno. Em 2014, estava procurando um livro antigo em um armário aqui de casa e encontrei os cadernos, amarelados pela ação do tempo, precisando ser manuseados com cuidado. Fiz uma viagem ao passado feliz. Escrevi muitos textos divertidos usando as anotações.