ESSE OBSCURO OBJETO DO DESEJO
PLAYBOY FOI O PRIMEIRO OBJETO SEXUAL DA MODERNIDADE COMPARTILHADO ENTRE FILHOS VARÕES E SEUS PAIS – PEQUENO FAROL NAS TRÊMULAS NAVEGAÇÕES DA MASCULINIDADE.
Meu tio Gregório comprava a revista Playboy. Minha tia Rebeca, sua mulher, não via isso com bons olhos, mas nós, seus sobrinhos, sim. Ele, discretamente, deixava os exemplares empilhados no criado-mudo (melhor que fosse mudo, no caso). Ou seja, num lugar onde, supunha-se, nós, as crianças, não devíamos mexer. Eram tempos em que os quartos matrimoniais eram locais sagrados, sumidos numa certa penumbra misteriosa que, por contraste, revelava que algo maravilhoso devia acontecer ali.
Entre Gregório e nós, seus filhos e sobrinhos, havia certa cumplicidade. Dono de particular vitalidade e de um espírito sapeca, ele parecia especialmente dotado para compreender as necessidades que nos assediavam no incipiente trânsito pela puberdade. Rara virtude num adulto da época, que se materializava em deixar a porta de seu quarto sem chavear.
Sem dúvida alguma, entre meu tio Gregório e Hugh Hafner havia algum ponto de contato. Claro que nunca se conheceram. Mas não é por acaso que Hefner escolheu o nome Playboy para a revista que fundou. Playboy, palavra que, entre metáfora e imperativo, admite diversos significados. “Rapaz brincalhão”, “o jogo do rapaz”, “rapaz em jogo” ou seguramente seu sentido mais subliminar, o convidativo “Brinque, meu rapaz, brinque”. Assim se reúnem o título da revista com a porta sem chavear: uma discreta autorização para brincar com a sexualidade.
É verdade que o fato de Hefner ter feito fortuna às custas de nossa libido pode gerar em nós certa desconfiança ou desconforto. Mas devemos reconhecer que, assim como tio Gregório teve a coragem de enfrentar minha tia Rebeca, Hefner teve a coragem de enfrentar o conservadorismo moral americano (e não só o do Norte). Além do mais, esse possível desconforto está, certamente, mais do lado do que precisamos ocultar que do lado de qualquer ideologia anticapitalista. Digamo-lo com todas as letras: se acusamos Hefner de ter publicado mulheres nuas explorando nossos desejos e acusamos tio Gregório de ter comprado essas revistas, fechando o ciclo do negócio, trata-se sem dúvida de uma acusação, como é de praxe hoje em dia, destinada a desviar a atenção e evitar que apareça nossa própria vergonha – que fiquem em evidência desejos que precisamos fazer de conta que não temos.
O certo é que a presença da Playboy nas gavetas das cômodas de milhões de lares do mundo contribuiu para abrir um espaço de comunicação implícita entre pais e filhos homens, criando um imaginário sexual compartilhado. Eis aqui, então, uma conclusão preliminar. A revista Playboy foi o primeiro objeto sexual da modernidade discretamente compartilhado entre filhos varões e seus pais. Uma espécie de pequeno farol nas trêmulas navegações atuais da masculinidade. Pena que não tenha aparecido revista equivalente como veículo de identificação sexual secreta entre mães e filhas.
Mulheres nuas não são novidade na iconografia humana. Desde as mulheres abrindo suas pernas para serem penetradas nas pinturas rupestres da Serra da Capivara – cuja idade calcula-se em 12 mil anos –, passando pelo Nascimento de Vênus (1485), de Boticelli, até a inimitável fotografia da Marilyn Monroe na capa do primeiro número da Playboy, em 1953, os corpos femininos têm sido representados em todas as formas, poses e texturas – cobertos ou descobertos – que o desejo dos homens e os delas pudessem imaginar.
Com efeito, não parece sensato supor que tão vasta e opulenta produção – desde a ingenuidade angelical até a malícia mais voluptuosa, ao longo de milhares de anos, nas mais diversas culturas – pudesse ser realizada sem a ativa participação de suas principais protagonistas: as mulheres. Ergo, as mulheres, certamente, desejam ser vistas. Mas vistas como?
A decisão da revista Playboy – que a partir de março próximo não publicará mais nus femininos, apenas fotografias de mulheres em poses insinuantes – foi causada por uma consideração de mercado e não por nenhuma consulta às mulheres acerca de como preferem aparecer. Poderíamos então criticar o dono da empresa, Hugh Hefner, e seu diretor, Cony Jones, de não procederem democraticamente. Mas eles poderiam contestar arguindo que estão atendendo ao pronunciamento da maioria de seus consumidores: os homens. De qualquer modo, as preferências sexuais não costumam se definir por votações democráticas. De fato, nos últimos anos as vendas caíram de 5,6 milhões de exemplares, em 1975, para apenas 800 mil na atualidade. Algo na relação entre o desejo masculino e seu objeto mudou.
Não é que o nu feminino tenha caído em desuso. Ocorre que a demanda tem se deslocado para a internet, em que se oferecem vastos catálogos nus: de lingerie, pijama, camisola, roupa de baixo e em diversas atividades sexuais. O fácil acesso, a maior diversidade e a gratuidade do serviço podem explicar só parcialmente essa mudança. É bem possível que o diretor de redação Cony Jones tenha razão: nesses anos, Playboy passou de mulheres com as pernas cruzadas para as pernas abertas; ou seja, apostou num confronto em que suas armas consistiam em quais famosas aceitavam escancarar sua anatomia e, de passagem, contar algum segredo de sua vida sexual. Entretanto, a web acolhia e difundia não imagens de mulheres de acesso impossível para o comum dos mortais, mas as cenas que habitam no inconsciente (hoje debilmente recalcado) de qualquer habitante humano desse mundo. Porém esse acesso direto à cena do gozo – uma espécie de festival sexual constantemente disponível a nível planetário – encurta de tal modo a distância entre o sujeito e a cena final de seu desejo que, em se tratando do homem, não cabe ali uma mulher e, na recíproca, em se tratando de uma mulher, não cabe ali um homem.
Playboy – numa nova empreitada corajosa – se propõe a publicar de agora em diante fotos de mulheres em que o traço distintivo não seja a nitidez ginecológica, mas a ondulação insinuante sob as roupas e a sensualidade sedutora no gesto, clássicos mediadores de sedução e conquista. Abertura de um campo onde não somente o sexo, mas também o amor, terá alguma chance. Um papel ativo reservado para a mulher, que ali precisará demonstrar que ainda é capaz de se oferecer de modo a fazer notar que o que deseja é um homem. Um papel humano para o homem que, no caso de aumentarem as vendas, virá a demonstrar que não é um mero objeto o que deseja, mas que deseja uma mulher.
Fonte: ZeroHora/Alfredo Jerusalinsky (Psicanalista) em 18/10/2015